Rubem Alves
Esse é
o mês em que sofro mais por causa de vocês, moços. Tenho dó. Ainda nem deixaram
de ser adolescentes, e já são obrigados a comprar passagens para um destino
desconhecido, passagens só de ida, as de volta são difíceis, raras, há uma
longa lista de espera. Alguns me contestam: afirmam saber muito bem o lugar
para onde estão indo. Assim são os adolescentes: sempre têm os bolsos cheios de
certezas. Só muito tarde descobrem que certezas valem menos que um tostão.
Seria
muito mais racional e menos doloroso que vocês fossem obrigados agora a
escolher a mulher ou o marido. Hoje casamento é destino para o qual só se vende
passagem de ida e volta. É muito fácil voltar ao ponto de partida e recomeçar:
basta que os sentimentos e as ideias tenham mudado.
Mas a
viagem para a qual vocês estão comprando passagens dura cinco anos, pelo menos.
E se depois de chegar lá vocês não gostarem? Nada garante...Vocês nunca
estiveram lá. E se quiserem voltar? Não é como no casamento. É complicado. Leva
pelo menos outros cinco anos para chegar a um outro lugar, com esse bilhete que
se chama vestibular e essa ferrovia que se chama universidade. E é duro voltar
atrás, começar tudo de novo. Muitos não têm coragem para isso, e passam a vida
inteira num lugar que odeiam, sonhando com um outro.
Em
Minas, onde nasci, se diz que para se conhecer uma pessoa é preciso comer um
saco de sal com ela. Os apaixonados desacreditam. Quem é acometido da febre da
paixão desaprende a astúcia do pensamento, fica abobalhado, e passa a repetir
as asneiras que os apaixonados têm repetido pelos séculos afora: “Ah! mãe, ele
é diferente...” “Eu sei que o meu amor por ela é eterno. Sem ela eu morro...”.
E assim se casam, sem a paciência de comer um saco de sal. Se tivessem
paciência descobririam a verdade de um outro ditado: “Por fora bela viola; por
dentro pão bolorento...”
Coisa
muito parecida acontece com a profissão: a gente se apaixona pela bela viola, e
só tarde demais, no meio do saco de sal, se dá conta do pão bolorento.
O Pato
Donald arranjou um emprego de porteiro, num edifício de ricos. Sentiu-se a
pessoa mais importante do mundo e estufou o peito por causa do uniforme que lhe
deram, cheio de botões brilhantes, fios dourados e dragonas...
Acontece
assim também na escolha das profissões: cada uma delas tem seus uniformes
multicoloridos, seus botões brilhantes, fios dourados e dragonas. Veja, por
exemplo, o fascínio do uniforme do médico. Por razões que Freud explica
qualquer mãe e qualquer pai desejam ter um filho médico. Lembram-se da Sociedade dos Poetas Mortos? O pai do
jovem ator queria, por tudo nesse mundo, que o filho fosse médico. E ele não
está sozinho. O médico é uma transformação poética do herói Clint Eastwood: o
pistoleiro solitário, apenas com sua coragem e o seu revólver, entra no lugar
da morte, para travar batalha com ela. Como São Jorge. O médico, em suas vestes
sacerdotais verdes, apenas os olhos se mostrando atrás da máscara, a mão
segurando a arma, o bisturi, o sangue escorrendo do corpo do inocente, em luta
solitária contra a morte. Poderá haver imagem mais bela de um herói?
Todas
as profissões têm seus uniformes, suas belas imagens, sua estética. Por isso
nos apaixonamos e compramos o bilhete de ida... Mas a profissão não é isso. Por
fora bela viola, por dentro pão bolorento...
Uma
amiga me contou, feliz, que uma parente querida havia passado no vestibular de
engenharia. “Que engenharia?”, perguntei. “Civil”, ela respondeu. “Por que esta
escolha?” — insisti. “É que ela gosta muito de matemática”. Pensei então na
bela imagem do engenheiro — régua de cálculo, compasso e prumo nas mãos, em
busca do ponto de apoio onde a alavanca levantaria o mundo! “Se ela tanto ama a
matemática talvez tivesse feito melhor escolha estudando matemática”.
Engenheiro,
hoje, mexe pouco com matemática. Tudo já está definido em programas de
computador. O dia a dia da maioria dos engenheiros é “tomar conta de peão em
canteiro de obra...”.
Isso
vale para todas as profissões. É preciso perguntar: “Como será o meu dia a dia,
enquanto como o saco de sal que não se acaba nunca?”.
Mas há
outros destinos, outros trens. Não é verdade que o único caminho bom seja o
caminho universitário. Acho que poucos jovens sequer consideram tal
possibilidade. É que eles se comportam como bando de maritacas: onde vai uma
vão todas. Não podem suportar a ideia de ver o “bando” partindo, enquanto ele
não embarca, e fica sozinho na plataforma da estação...
Deixo
aqui, como possibilidade não pensada, este poema de Walt Whitman, o poeta da Sociedade dos Poetas Mortos:
“Em
nome de vocês...
Que ao
homem comum ensinem
a
glória da rotina e das tarefas
de
cada dia e de todos os dias;
que
exaltem em canções
o
quanto a química e o exercício
da
vida não são desprezíveis nunca,
e o trabalho
braçal de um e de todos
—
arar, capinar, cavar,
plantar
e enramar a árvore,
as
frutinhas, os legumes, as flores:
que em
tudo isso possa o homem ver
que
está fazendo alguma coisa de verdade,
e
também toda mulher
usar a
serra e o martelo
ao
comprido ou de través,
cultivar
vocações para a carpintaria,
a
alvenaria, a pintura,
trabalhar
de alfaiate, costureira,
ama,
hoteleiro, carregador,
inventar
coisas, coisas engenhosas,
ajudar
a lavar, cozinhar, arrumar,
e não
considerar desgraça alguma
dar
uma mão a si próprio.”
Desejo
a vocês uma boa viagem. Lembrem-se do dito do João: “A coisa não está nem na
partida e nem na chegada, mas na travessia...” Se, no meio da viagem, sentirem
enjoo ou não gostarem dos cenários, puxem a alavanca de emergência e caiam fora.
Se, depois de chegar lá, ouvirem falar de um destino mais alegre, ponham a
mochila nas costas, e procurem um outro destino. Carpe Diem!
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